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25-07-2014
 

O vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo, Marcelo Zelic, acredita que apesar do fim da ditadura militar a tortura ainda é uma prática comum e enraizada na sociedade brasileira. De acordo com ele, esse tipo de prática está banalizada e é legitimada por parte da sociedade. “Há um leque grande de denúncias que abrangem um espectro muito diverso dos setores da nossa sociedade. Isso aponta para um desafio enorme de pensar em medidas concretas de combate a tortura”, afirmou Zelic em entrevista a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). O ativista aponta que não existem soluções mágicas para o fim de tortura, mas acredita que é necessário trabalhar em duas frentes: a punição dos torturadores e a educação. “Nós temos que ter um processo que seja pedagógico no sentido de ensinar a sociedade a não tolerar esse tipo de violência”, sugere.
Veja abaixo a íntegra da entrevista. 
 
CEMDP: A tortura é uma prática enraizada na sociedade brasileira?
Marcelo Zelic: Recentemente a Anistia Internacional fez uma reunião em São Paulo e eu fiz um levantamento de vídeos a respeito de tortura. O critério é que as gravações tivessem sido publicadas em matérias que saíram no jornal, seja ele regional ou nacional. Eu recolhi mais de cem vídeos e o que constatei é uma situação que aponta para a banalização da tortura no Brasil. Além das denúncias de tortura praticadas por policiais em delegacias encontramos casos de tortura na própria formação desses policiais. Também encontrei diversos vídeos com denúncias no âmbito da sociedade. O ladrão que para roubar espanca e tortura. Pessoas relacionadas ao tráfico que também usam dessa prática. Também existem os casos de pessoas que cuidam de idoso que usam da tortura. Há um leque grande de denúncias que abrangem um espectro muito diverso dos setores da nossa sociedade. Isso aponta para um desafio enorme de pensar em medidas concretas de combate a tortura.
 
CEMDP: Qual a raiz por trás do que você chama de banalização da tortura?
MZ: Existe um elemento importante que vem da escravidão, um fator cultural, mas existe outro elemento chave que é a impunidade. Existe uma legislação que proíbe a tortura no Brasil, mas se você pega o volume de denúncias que foram feitas e compara com o número de casos em que efetivamente levaram a condenação dos responsáveis existe uma discrepância enorme. Mesmo aqueles casos que são denunciados por entidades nacionais e internacionais de defesa de direitos humanos. Existem casos ruidosos, como por exemplo, quando surgem as histórias que ganham grande repercussão e que podem até acabar com a punição dos envolvido. São casos que estão no imaginário das pessoas, mas no corriqueiro, no dia a dia não existe uma apuração efetiva com relação a punição de pessoas envolvidas com tortura. Então a impunidade é uma das grandes raízes que mantém essa prática com a força que ela tem hoje.
 
CEMDP: Como você relaciona a tortura praticada durante a ditadura militar com a praticada hoje?  
MZ: Durante a ditadura a prática de tortura se exacerba, mas ela é uma prática enraizada no Brasil. A tortura não foi fundada pelo regime militar. Durante a ditadura do Getúlio Vargas (1937-1945) as práticas de tortura foram muitos comuns também. Existe um conjunto de práticas que vem desde sempre. Desde a tortura ao escravo que fugia, passando pelas práticas do Estado Novo e pela Ditadura Militar. A tortura nunca parou durante os intervalos de democracia. O jornalista Marcio Moreira Alves alerta no livro “Tortura e Torturadores” que agora (no momento em que ele escrevia o livro em 1966) a prática de tortura estava voltada para setores da classe média que estavam se opondo a ditadura militar. Por essa razão os casos ganham mais evidência nesse momento. Mas que ao mesmo tempo a tortura era de certa forma aceita pela sociedade da época quando aplicada contra um suposto marginal, o ladrão, contra pessoas que não faziam parte dessa rede de relações da sociedade. Então existe a presença constante da tortura em nossa sociedade. Não é algo exclusivo da ditadura.
 
CEMDP: A tortura é uma prática presente em toda a história do Brasil?
MZ: A tortura tem uma permanência na história do Brasil. Quando existe um regime de exceção acontece uma exacerbação desse tipo de prática. Seja no Estado Novo, ou durante o regime militar.  Quando você tem a decorrada desses regimes autoritários, ou quando existe uma desacelerada do ciclo autoritário existe um refluxo na prática da tortura, mas ela não para. Deixa apenas de atingir determinados setores da sociedade. Não se vê um deputado como o Rubens Paiva sendo morto e torturado hoje, mas existem muitas pessoas sendo torturadas atualmente. Se nós entrarmos em um novo ciclo autoritário a tortura se intensifica de novo porque ela nunca foi combatida em sua raiz. Uma medida que poderia ser tomada é a federalização dos casos de tortura no sentido de deslocar o julgamento de pessoas envolvidas com tortura para a esfera federal de modo que esses casos saiam da cumplicidade de todas as pessoas envolvidas no âmbito local com o torturador como as corregedorias das policias e a própria justiça.
 
CEMDP: Quais medidas poderia ser tomadas para combater a prática da tortura?
MZ:
De um lado é preciso punir as pessoas que praticam a tortura, e para isso defendo a federalização, ou a criação de varas específicas para julgar esse tipo de crime. Com isso a tramitação do processo justiça seria mais rápida e não seria necessário esperar 20, 30 anos para julgar esse tipo de crime. Por outro lado também é preciso um processo de educação da sociedade. O número de homicídios no Brasil é muito alto. Temos mais mortes por ano no Brasil do que em muitos países em guerra onde há conflito armado. Em um país que a polícia age com a violência que age isso cria uma cultura na sociedade onde você multiplica essas ações no cotidiano. O cara do tráfico vai lá e também age desse jeito. Nós temos que ter um processo que seja pedagógico no sentido de ensinar a sociedade a não tolerar esse tipo de violência.
 
CEMDP: Setores da sociedade brasileira toleram a tortura?
MZ:
A sociedade brasileira tolera a tortura o tempo inteiro. Quantas vezes você não escuta a expressão “bem que ele mereceu umas porradas” ou “bandido bom é bandido morto”? Existe uma cultura que justifica a tortura o tempo inteiro. Existe uma tolerância e uma difusão dessa prática em diversos segmentos da sociedade brasileira. Penso na tortura como um rio que está no seu curso normal e de repente dá uma cheia e ele se espraia. A dinâmica da tortura quando existe um fechamento político, seja por conta de uma ditadura, seja porque há um governante que mesmo na democracia tem práticas autoritárias, se expande para diversos setores da sociedade e se reforça como prática cotidiana da sociedade. A ditadura foi um momento de espraiamento do rio, a tortura é uma cultura que está presente permanentemente na sociedade brasileira e ela traz essas raízes escravocratas que fazem do Brasil uma sociedade da exclusão até hoje. É fundamental que não só se desenvolva mecanismos efetivos de punição para os torturadores, mas também é essencial um trabalho para educar uma sociedade com convicções de que isso é uma chaga que precisa ser extirpada. Não existe uma solução mágica para uma coisa que está enraizada a centenas de anos.

CEMDP: A tortura é uma prática comum em outros lugares do mundo?
MZ:
O Brasil está inserido dentro de um contexto global onde a prática da tortura é legitimada em centenas de países. Nos Estados Unidos, por exemplo, a tortura há uma década foi oficializada pelo próprio presidente. Existe um conjunto de países aonde essa prática entra na mesma dinâmica de funcionamento do Brasil. Um volume muito grande da população mundial tem medo de ser torturado.
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