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25-07-2014
 
Gorete Marques
Uma transição democrática que não rompeu por completo com a ditadura e uma sociedade tolerante à violência, são alguns dos fatores apontados pela pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), Gorete Marques, para a permanência da prática da tortura no nosso cotidiano. Gorete também acredita que a dificuldade em punir os casos de tortura deve-se à pouca visibilidade que eles têm, já que na maioria das vezes, o ato é praticado sem testemunhas e por agentes de Estado que têm a sua fala mais valorizada do que a das vítimas. Na sua opinião, só um posicionamento mais firme por parte do Estado e uma mudança cultural será capaz de romper com essas práticas. “É preciso enxergar a prática da tortura como algo perverso para a sociedade, para a democracia e para o Estado de direito”, defende.
 
CEMDP - Gorete você poderia fazer um histórico das práticas de Tortura?
Gorete Marques -
A Tortura era uma prática diária na Idade Média e usada como recurso de confissão e punição. Ela vai sendo problematizada e colocada em questão no período do Iluminismo em que você tem o surgimento da ideia de que as penas não deveriam ser cruéis, nem desumanas ou degradantes. Existe todo um processo de humanização das penas e de repúdio às práticas de suplício e de tortura aos prisioneiros. Com o tempo vai deixando de ser algo que fazia parte do poder Judiciário. Ela passa a ser criminalizada e há uma série de convenções internacionais, os tratados da ONU, que criminalizam e combatem a tortura. Há também os tratados de prevenção.
 
CEMDP - E no Brasil?
GM -
No Brasil tivemos na nossa história um período de escravidão bastante longo com práticas de violência contra os negros e escravos. Temos até o Pelourinho, como um símbolo de castigo mais visível dessa violência. Essas práticas de violência eram naturais como formas de punição e de controle social. Ao longo dos anos, novas constituições, novas legislações tentam prevenir o tratamento dado aos presos, na forma de abordagem dos agentes públicos com os cidadãos, mas aconteceram também os períodos de ditadura em que houve toda uma instrumentalização da tortura como prática e controle dos segmentos políticos. Os comunistas e anarquistas sendo perseguidos e a prática da tortura é instrumentalizada como uma forma de inibir esses grupos políticos de atuarem na resistência ao poder posto. Mas depois durante o período da democracia na nova constituição a tortura ainda perpassa a sociedade. Determinados segmentos sociais continuam sendo vítimas privilegiadas da violência dos agentes de Estado. A tortura faz parte da máquina desse controle político. Você tem segmentos populares que continuam sendo torturados nas unidades prisionais e você tem os presos políticos que passam por essa prática também.
 
CEMDP – Na democracia foram criados mecanismos de combate à Tortura?
GM -
Com a transição democrática, o Brasil assina e ratifica tratados internacionais, comprometendo-se a ter um posicionamento contrário à prática da tortura pelos seus agentes. O Estado tem que ter esse papel de inibir essa prática e de criar uma legislação que criminalize a tortura, o que acontece apenas em 1997, por conta do caso da favela Naval. Já no ano passado há a aprovação do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Há todo um processo de tentativa de inclusão na pauta política a questão do combate e da prevenção à Tortura. Mas mesmo com o fim da ditadura há aqueles segmentos que sempre foram alvo da violência dos agentes de Estado e que continuam sendo ainda vítimas dessa prática.
 
CEMDP - Você falou da Tortura como algo punitivo, usada como controle social. Esse é o principal objetivo da Tortura, punir e controlar socialmente?
GM -
Em ditaduras ela tem essa instrumentalidade. Ela tem também essa função de controle para a manutenção do poder vigente. Mas eu acho que a tortura continua perpassando a atividade cotidiana, a atividade policial numa delegacia ou numa abordagem policial na rua por vários motivos. Na delegacia pode ser para obtenção de confissão de um determinado delito para obtenção de força para mais controle. No sistema prisional como forma de humilhação, um castigo.
 
CEMDP - Quais são as principais dificuldades para punir os crimes de tortura?
GM -
Ela é, num plano micro, uma prática cotidiana invisível, porque é difícil você conseguir registrar casos de tortura, a não ser que a pessoa denuncie. Mas geralmente existe um descrédito da pessoa que denuncia. Se for um preso, eles vão avaliar, ‘até que ponto eles estão falando a verdade? Será que essa pessoa não tem alguma razão para querer imputar algum crime a algum agente público?’. Então sempre existe um descrédito em relação à palavra da vítima. Além de ser um crime difícil de apurar, existe também o receio das vítimas em denunciar já que há essa avaliação do quanto essa fala é verdadeira ou não. Também é um crime que acontece em lugares reservados, afastados, por isso não existem testemunhas que possam ajudar na apuração do crime. Então é um tipo de crime bem complexo, ainda mais que envolve agentes públicos. Por um lado há um descrédito da fala da vítima, por outro lado há a valorização da fala de um agente público, do policial.
 
CEMDP – O que contribui para a permanência da prática de tortura no nosso dia a dia?
GM -
Existe uma série de componentes que contribuem para a persistência desse tipo de prática no cotidiano. Você pode ter uma sociedade que é tolerante às violências praticadas pelos agentes públicos na aplicação da lei. Você pode ter autoridades públicas que se manifestam dizendo que a polícia tem que ser mais ostensiva, que as penas têm que ser mais severas. De certa forma, sendo coniventes ou incentivando a prática arbitrária, violência abusiva, ou ostensiva dos agentes da aplicação da lei. Outra questão é a mídia. Então você tem uma mídia que todos os dias traz relatos de crimes e que fala que para acabar com essa criminalidade a polícia tem que agir, ser mais ostensiva, se necessário mais violenta. Há todo um universo de incentivo à prática da violência pelos agentes responsáveis pela aplicação da lei. Então apesar dos tratados internacionais e de toda uma legislação que tente inibir essas práticas, no dia a dia vemos essas demonstrações de ódio público: tem que bater, tem que matar...
 
CEMDP - Geralmente associamos a tortura à uma prática do Estado ou ligada aos agentes de Estado e no entanto temos observado o aumento desses justiçamentos feitos pela própria sociedade. A tortura é uma prática apenas do Estado?
GM -
Nos tratados internacionais existe uma definição de tortura apenas associada como algo praticado por agentes públicos. O que não é praticado pelo Estado é enquadrado num outro tipo penal. Aqui, no Brasil, a nossa legislação de 1997 é de tipo comum. Ou seja, ela não estende a prática do crime aos agentes. Então qualquer pessoa no Brasil pode ser acusada de crime de tortura. O que acontece na nossa lei é que ela tem um artigo específico em que agrava o crime quando praticados por agentes de Estado. Agrava também em situações de violência contra idosos. A legislação brasileira estabelece que qualquer pessoa pode ser acusada de crime de tortura.
 
CEMDP – Há alguma diferença no tratamento que é dado aos agressores quando eles são agentes do Estado?
GM -
Eu fiz meu mestrado em processos judiciais, eu tinha interesse em analisar como os operadores do direito estavam tratando o crime de tortura. Consegui no Fórum Criminal da cidade de São Paulo reunir 60 processos criminais de 2000 a 2004. Eu analisei só os que tinham decisão em primeira instância, que foram 53. Desses, 181 réus eram agentes do Estado e 12 eram não agentes. Eu analisei qualitativamente esses casos para saber se existiam diferenças nos desfechos e percebi que a maioria das absolvições acontecia quando eram agentes públicos e a maioria das condenações aconteciam quando eram agentes privados. Há, então, essa desproporcionalidade na consideração da fala das partes e a desconsideração da fala da vítima, sempre no caso do agente público como réu. O réu tem uma fala mais valorizada porque é um agente público aplicador da lei e a vítima às vezes ostenta uma ficha criminal. Há todo um julgamento em cima dessa vítima. Já nos casos de tortura envolvendo agentes privados isso era invertido, a fala da vítima era valorizada e a do réu era desacreditada. Nos casos, por exemplo, de violência doméstica envolvendo uma criança. Tendia-se muito a valorizar a fala da criança, a fala da vítima. Quase sempre a fala do agressor era colocada em descrédito. É interessante ver essa inversão de postura.
 
CEMDP - Comparando o Brasil com outros países no mundo, ele estaria entre os países que têm a tortura mais institucionalizada?
GM -
A Anistia Internacional lançou um boletim mostrando uma pesquisa que eles fizeram em vários países. Aos brasileiros foi perguntado que se acaso fossem presos, se eles achavam que seriam torturados. O Brasil foi o país que apresentou os maiores índices de pessoas que achavam que seriam torturadas. Isso mostra que as pessoas sabem que isso é o que acontece e temem por isso.
 
CEMDP - O temor das pessoas corresponde com os índices de tortura que temos no Brasil?
GM -
Conseguir dados sobre isso é bem complicado. O que temos são os relatórios elaborados pelas relatorias especiais da ONU quando vêm ao Brasil e o Comitê de Prevenção à Tortura que esteve no Brasil há dois anos e produziram o relatório. Nos relatórios eles dizem que a Tortura no Brasil é sistemática e grave. O Nigel Rodley, Relator Especial da ONU sobre a Tortura no ano de 2000, esteve no Brasil nessa época e em 2001 ele lançou um relatório com vários dos casos que acompanhou. Ele apresenta 30 recomendações para as quais o Brasil teria que dar respostas. Acho que nesses 14 anos, principalmente ano passado, com a aprovação da lei, houve pequenos avanços, principalmente no plano federal com a criação do Sistema de Combate e Prevenção à Tortura. Mas temos poucos dados até pelas características desse tipo de crime que depende das denúncias das pessoas para que ele seja visível, para que seja possível notificar. É difícil produzir esse tipo de informação.
 
CEMDP - Porque essa herança nas práticas de tortura não é tão percebida nos outros países latino-americanos que também sofreram com regimes ditatoriais?
GM -
Tivemos uma transição democrática na qual não conseguimos fazer rupturas importantes. E uma delas diz respeito à área de segurança pública. Hoje a gente ainda tem uma Polícia Militar ligada às Forças Armadas. Isso ainda é um resquício, né? É a continuidade de uma estrutura que foi construída ali no período ditatorial. Em certa medida, as pessoas que faziam parte da estrutura do Estado permaneceram. Não existiu uma mudança de fato na nossa estrutura com o sistema que havia antes. Há, então, uma transição que permanece com estruturas do passado.
 
CEMDP - O que seria importante para melhorar o combate à tortura?
GM -
Acho que é necessário um posicionamento firme por parte do Estado. Há também, como eu falei antes, esse ambiente propício à tortura. Então, por exemplo, se as autoridades inibissem, não fossem coniventes, não estimulassem a violência por parte dos seus agentes, o cenário poderia ser diferente. Se a gente tivesse uma mídia que divulgasse informações de forma mais cuidadosa, que não estimulasse a violência, sem colocar a opinião pública a favor de atos violentos praticados pelos agentes do Estado. É importante também que haja campanhas que conscientizem a sociedade sobre o quanto a prática da tortura é prejudicial à própria sociedade, à democracia, ao Estado de direito... Acho que seriam elementos importantes. E também tem a questão da responsabilização. Eu não falo nem punição, falo em responsabilização e apuração dos crimes. A gente ainda tem baixos índices de apuração. Para se ter uma ideia, em quatro anos de levantamento de processos relacionados à Tortura, que fiz para a minha pesquisa, encontrei 60. Mas se você observar a quantidade de denúncias que as entidades de direitos humanos receberam de tortura no mesmo período, foram cerca de 200. Quer dizer, é muito maior. Então o que está chegando no sistema de justiça? O que está sendo apurado? Como está sendo apurado? A responsabilização muitas vezes é individualizada ao agente apontado, mas o diretor da Unidade Prisional, num caso de violação, poderia ser responsabilizado pela omissão, porque isso inclusive está previsto na lei de Combate à Tortura. É importante que ele saiba que no papel dele enquanto autoridade, deve se posicionar contra essas práticas. Porque isso pode inibir essa prática na ponta. É importante que haja uma mudança cultural. Enxergar a prática da tortura como algo perverso para a sociedade, para a democracia e para o Estado de direito.      
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