Biografia
Em 15/03/1974, tomou posse como presidente da República o general Ernesto Geisel, anunciando um processo de distensão política lenta, gradual e segura. No dia seguinte os militantes comunistas David Capistrano da Costa e José Roman foram presos no percurso entre Uruguaiana, cidade gaúcha que fica na fronteira com a Argentina, e a capital paulista. Seus nomes integram a lista de desaparecidos políticos anexa à Lei nº 9.140/95.
Com esses dois desaparecimentos, começou a se tornar pública uma extensa ofensiva dos órgãos de segurança do regime militar contra o PCB que se alongaria até janeiro de 1976, quando foi morto sob torturas o operário metalúrgico Manoel Fiel Filho. No cômputo geral dessa investida, que mais tarde receberia o nome de Operação Radar, Operação Marumbi ou Operação Barriga Verde, dependendo do estado atingido, centenas de integrantes desse partido foram presos, atingindo uma cifra que a revista IstoÉ de 31/03/2004 calculou em 679.
Se até aquele momento a estratégia do regime militar tinha sido exterminar os opositores envolvidos com a resistência armada, o foco central da repressão passaria então a ser o PCB, que sempre se posicionou contra as ações de guerrilha e tinha conseguido preservar uma estrutura partidária que, para o aparelho de repressão, se tornaria uma ameaça caso a distensão de Geisel evoluísse para uma verdadeira abertura política. Tratava-se, pois, de neutralizar o PCB antes da volta à democracia.
Em São Paulo, segundo declarações do ex-agente Marival Chaves à matéria já citada da revista IstoÉ, o comando da operação encarregada de aniquilar o PCB ficou a cargo do chefe do DOI, coronel Aldir dos Santos Maciel, codinome ‘Dr. Silva’. Diz a reportagem, citando explicitamente o papel do coronel reformado José Brant Teixeira: “Narradas por Marival, as histórias dos doutores do CIE parecem não ter fim. Em 1974, quando trabalhava em São Paulo, ele diz ter visto o coronel Brant chegar ao DOI-Codi com os dirigentes comunistas José Roman e David Capistrano, presos quando tentavam regressar ao Brasil pela fronteira do Uruguai. Segundo ele, ambos foram transferidos para a Casa de Petrópolis, onde morreram assassinados. Em 1977, quando servia no Batalhão de Infantaria de Selva, Marival diz ter deparado novamente com Brant, que se dirigia ao Araguaia numa operação de controle para evitar a localização dos corpos dos guerrilheiros do PCdoB. Em 1981, a Operação Limpeza foi reforçada com a transferência de André Pereira Leite Filho, o Doutor Edgar, oficial do DOI-Codi de São Paulo, para o CIE de Brasília. Ele integrava a tropa de choque de Aldir Santos Maciel, que eliminou oito dirigentes do Comitê Central do PCB”.
José Roman era nascido na capital paulista, filho de espanhóis, operário metalúrgico e, desde 1950, participava ativamente do sindicato e das lutas da categoria junto com sua esposa, Lídia Pratavieira Roman. Tiveram dois filhos. Em 1952, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, onde passou a atuar no Partido Comunista. Em 1966, a família retornaria a São Paulo. Quando de seu desaparecimento, trabalhava como corretor de imóveis num esquema operacional do PCB.
Em 19/03/1974, Lídia recebeu um telegrama assinado por José Roman e informando que sua viagem para buscar David Capistrano no Uruguai tinha sido bem sucedida e que estava voltando. No dia 21 de março, José Luiz, filho de José Roman, recebeu um telefonema informando que o pai estava preso e que a família deveria providenciar um advogado. À época, o advogado Aldo Lins e Silva impetrou habeas-corpus, que foi negado. Lídia registrou queixa sobre o desaparecimento na delegacia policial do Itaim Bibi, em São Paulo, e fez buscas em diversos órgãos de segurança, mas não obteve qualquer informação sobre o paradeiro do marido.
David Capistrano nasceu na localidade de Jacampari, distrito de Boa Viagem, município de Quixeramobim, no Ceará, em 16/11/1913. O pai era um pequeno proprietário rural. Aos 13 anos, David mudou-se para o Rio de Janeiro, onde viveu aos cuidados de um tio materno. Sem condições de estudar, trabalhou em bares e botequins até a idade de servir ao Exército, em 1931. Conheceu nesse ano o tenente Ivan Ribeiro, que começou a lhe entregar material do Partido Comunista. Em 1935, participou do levante da ANL como sargento da Aeronáutica, atacando o Regimento de Aviação de Realengo. Foi preso e levado para o presídio da Ilha Grande, sendo condenado a sete anos de prisão. Em 1936, fugiu a nado pelo canal que separa a ilha do continente. Viajou então para o Uruguai, onde sobreviveu como mecânico de automóveis.
Em meados de 1936 foi para a Europa e lutou na Guerra Civil Espanhola como combatente das Brigadas Internacionais, até que elas fossem desmobilizadas em 1938. Foi então para a França, onde lutou como partisan na Resistência contra a ocupação nazista. Preso em um campo de concentração alemão durante oito meses, foi poupado da execução por não ser francês. Libertado, pesando apenas 35 quilos, recuperouse e retornou ao Uruguai em 1941.
Entrou no território brasileiro e foi preso em setembro de 1942. Anistiado em 1945, fixou residência em Recife e se engajou abertamente nas atividades do PCB, integrando o seu Comitê Central a partir de 1946. Em 1947 foi o mais votado dos deputados estaduais constituintes de Pernambuco. Com o cancelamento do registro do PCB, foram cassados os mandados dos comunistas eleitos. David foi então deslocado para São Paulo e se fixou inicialmente em Sorocaba, participando da organização do núcleo comunista na fábrica de tecidos Votorantin. Atuou por algum tempo na capital paulista, no bairro da Mooca e foi destacado pelo partido para se estabelecer na Baixada Santista. Ali foi preso em 1952, quando morava em São Vicente e matinha atividade profissional de mecânico simultaneamente à atuação como dirigente partidário.
Viveu também no Rio de Janeiro, em 1953, antes de seguir para a Escola de Quadros do Partido Comunista da União Soviética, em Moscou, onde permaneceu por dois anos. No retorno ao Brasil, foi deslocado para atuar no Amazonas, Pará e Ceará, só voltando a atuar legalmente em Pernambuco no ano de 1957, onde dirigiu os jornais A Hora e Folha do Povo. Ao lado de Hiran de Lima Pereira, Gregório Bezerra e outros dirigentes comunistas, teve papel destacado nas articulações políticas para construir a Frente do Recife, que propiciou a eleição de Pelópidas da Silveira para a prefeitura daquela capital em 1955, e em seguida sua sucessão por Miguel Arraes, que depois de prefeito seria eleito governador do estado em 1962.
Na crise da renúncia de Jânio Quadros, David foi novamente preso, assim como Hiran e outros líderes comunistas, sendo enviado à ilha de Fernando de Noronha. Após a deposição de João Goulart, em abril de 1964, teve seus direitos políticos cassados e ficou escondido em Pernambuco, dirigindo a edição do jornal clandestino Combater. Emborra alinhado com as posições mais à esquerda no Comitê Central do PCB, não se engajou em nenhuma das várias cisões sofridas por esse partido entre 1966 e 1968, permanecendo como intransigente defensor da unidade partidária.
Em 1971, contra sua vontade, acatou a decisão do partido de enviá-lo para a Tchecoslováquia como seu representante na revista Problemas da Paz e do Socialismo. Teria permanecido naquele país de 1972 até o momento em que ingressou no Brasil, sendo preso e transformado em mais um desaparecido político. O livro de Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, Dos Filhos Deste Solo registra a informação de que a bagagem de Capistrano foi vista no DOPS de São Paulo por outros presos políticos, o que indica sua passagem por aquele órgão de repressão.
Uma publicação da Assembléia Legislativa de Pernambuco, “David Capistrano – entre teias e tocaias”, da autoria de Marcelo Mário de Melo, traz mais informações sobre o seu desaparecimento: “Em 1974, David Capistrano firmou a posição de voltar ao Brasil e avisou à família. Em março, chegou à França, vindo da Tchecoslováquia, portando documentos em nome de Enéas Rodrigues da Silva. Armênio Guedes e o cientista Luiz Hildebrando, que o receberam, fizeram restrições à sua volumosa bagagem, com quinze quilos a mais, sendo catorze só de livros, e à compra em Praga da passagem para Buenos Aires”. No seu livro de memórias, Luiz Hildebrando registra esse contato com David Capistrano, a quem se refere como “uma força da natureza” e “o capitão coragem”.
De Orly, Capistrano chegou à Argentina. Daí, acompanhado por um argentino, foi à cidade uruguaia [argentina, na verdade] de Paso de Los Libres, fronteira com Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, onde se fez o contato com o encarregado pelo esquema da travessia, que acionou em Uruguaiana Samuel Dib, militante do PCB, e juntos providenciaram a passagem de David para o lado brasileiro, tendo havido dificuldades, devido ao grande volume da bagagem. Depois de uns dias de espera num aparelho do PCB, chegou a Uruguaiana José Roman, enviado pelo PCB de São Paulo, com um Volkswagen, para transportar David Capistrano. Os dois seguiram com destino a São Paulo no dia 15 de março de 1974. Uma viagem sem chegada e sem retorno, que deu início ao seu martírio e à via crucis das suas famílias.
Avisada no trabalho de que David e José Roman não tinham comparecido a nenhum dos encontros programados, Carolina voltou para casa e disse a Maria Augusta: “Mamãe, papai entrou, mas desapareceu”. Chorando ao telefone, David Capistrano Filho avisou Cristina: “Pegaram ele!”. David Capistrano e Maria Augusta de Oliveira viveram juntos desde 1947. Maria Augusta era dirigente estadual do PCB na Paraíba e tinha concorrido à Assembléia Legislativa daquele estado. Tiveram três filhos: David Capistrano da Costa Filho, Maria Cristina e Maria Carolina.
Maria Augusta teve papel destacado na luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, sendo uma das fundadoras e dirigentes do Comitê Brasileiro pela Anistia, de São Paulo. Dona de carisma e memória excepcionais, tornou-se porta voz da luta. Maria Augusta participou da citada audiência com o general Golbery e esteve presente em todos os atos referentes às denúncias dos familiares.
O filho de Capistrano, também chamado David, se tornaria mais tarde um importante médico sanitarista, dirigente do PCB, sendo preso nove vezes durante o regime militar, a primeira com 16 anos, em abril de 1964. Recuperado o Estado Democrático de Direito, foi eleito prefeito de Santos pelo PT, seu novo partido, obtendo essa vitória em 1992 no mesmo dia em que a revista Veja publicou a informação de que seu pai teria sido esquartejado pelos órgãos de segurança em 1974.
Intervieram diretamente junto ao governo brasileiro apelando pela vida de David Capistrano o primeiro secretário do Partido Socialista Francês, François Miterrand, o presidente Giscard d’Estaing e até mesmo o papa Paulo VI, que enviou ao Rio de Janeiro dois missionários para tratar diretamente com Geisel desse e de outros casos de desaparecimentos. Em fevereiro de 1975, o preso político Samuel Dib, taxista em Uruguaiana, acusado de pertencer ao comitê de fronteira do PCB, prestou declarações ao DOPS afirmando que estivera com David em março de 1974, em Paso de los Libres, e que ele tinha entrado no Brasil com José Roman num carro Volkswagen, cor gelo, no dia 15 de março e que soubera que não haviam chegado a São Paulo.
O documento 203/187, do DOPS/RJ registra: “Segundo anotações neste Departamento em 16 de setembro de 1974, David Capistrano da Costa, encontra-se preso há quatro meses, sendo motivo da Campanha da Comissão Nacional Pró-Anistia dos Presos Políticos”. Prontuário do DOPS/RJ repete a informação.
Na entrevista que deu à revista IstoÉ de 01/04/1987 o ex-médico Amílcar Lobo declarou que atendeu David nas dependências do DOI-CODI/RJ. O ex-sargento e ex-agente do DOI-CODI/SP, Marival Dias Chaves, em entrevista à revista Veja, declarou que David Capistrano esteve preso no DOI-CODI do Rio de Janeiro e foi levado para a Casa de Petrópolis, juntamente com José Roman, onde foi executado e esquartejado, tendo seus restos mortais sido ensacados e jogados num rio próximo.
Nos relatórios militares de 1993, apenas o da Marinha contém uma informação sobre David Capistrano, por sinal contendo um dado truncado e misterioso sobre o local em que teria sido atendido, podendo, em tese, ser uma referência ao manicômio judiciário de Franco da Rocha, para onde alguns presos políticos foram levados naquele período: “desapareceu em São Paulo, no dia 16/03/74. Pertencia ao Comitê Central do PC, tendo sido preso na unidade de atendimento do Rocha, em São Paulo/SP”.